Documentos vazados sugerem que a Suprema Corte dos EUA pode estar prestes a derrubar uma decisão histórica de 1973 que legalizou o aborto no país. O que poderia acontecer?
Protestos pró e contra o direito ao aborto foram organizados nos Estados Unidos após documentos vazados sugerirem que a Suprema Corte do país pode reverter uma decisão histórica sobre o tema.
No rascunho de um documento publicado pelo site Politico, o juiz conservador Samuel Alito diz que a decisão de 1973, conhecida como Roe versus Wade, é “flagrantemente errada” e deve ser anulada.
A Suprema Corte confirmou a autenticidade do material vazado – um documento inicial sobre a discussão.
A decisão já está sendo revisada no mais alto tribunal dos Estados Unidos em outro caso, que envolve o Estado do Mississippi.
Se a Suprema Corte derrubar a decisão de 1973, o aborto se tornaria instantaneamente ilegal em 22 estados. A decisão está prevista para sair no mês de julho.
Veja abaixo o que está em jogo e o que pode acontecer a seguir:
O que vazou?
O site Politico informou na segunda-feira (02/05) que o juiz Alito havia escrito um “repúdio veemente e determinado” ao direito ao aborto para um parecer destinado a justificar a decisão do tribunal.
De acordo com o Politico, Alito escreveu que “Roe estava flagrantemente errada desde o início”.
Jane Roe era o pseudônimo de Norma McCorvey, autora da ação que questionou no fim dos anos 1960 a constitucionalidade de leis que proibiam o aborto no Estado do Texas.
“É hora de prestar atenção à Constituição e devolver a questão do aborto aos representantes eleitos do povo”, diz Alito no documento.
O vazamento do texto, sem precedentes na história da Suprema Corte dos EUA, provocou uma onda de choque no país com a possibilidade de que uma decisão de quase 50 anos poderia ser derrubada.
Quatro outros magistrados conservadores votariam com Alito: Clarence Thomas, Neil Gorsuch, Brett Kavanaugh e Amy Coney Barrett.
Todos foram indicados pelo Partido Republicano. Não está claro como o sexto juiz nomeado pelos republicanos, o juiz John Roberts, votaria.
Os três nomeados pelos democratas – Stephen Breyer, Sonia Sotomayor e Elena Kagan – tentariam dissidências no grupo republicano para manter os direitos.
Quem é Samuel Alito?
Samuel Alito é um dos seis juízes da Suprema Corte dos EUA indicados por presidentes republicanos. O tribunal tem nove ministros no total.
Ex-advogado e juiz de Nova Jersey, ele foi indicado pelo presidente George W. Bush em outubro de 2005 e atua na Suprema Corte desde janeiro de 2006.
Bush descreveu o juiz formado em Princeton e Yale como “acadêmico, imparcial e de princípios”.
O juiz Alito é considerado um dos juízes mais conservadores da Suprema Corte dos Estados Unidos.
Durante um discurso em um evento conservador em novembro de 2020, ele criticou os casamentos entre pessoas do mesmo sexo, atacou leis sobre direitos reprodutivos e disse que as medidas contra a covid eram uma ameaça à liberdade de expressão e religião.
Seus críticos questionam sua imparcialidade.
O ex-presidente Barack Obama, que foi senador e votou contra a indicação de Alito em 2006, disse que “ele sempre fica do lado dos poderosos contra os que não têm poder”.
“Se houver um caso envolvendo um empregador e um empregado, e a Suprema Corte não tiver dado uma direção clara, o juiz Alito decidirá a favor do empregador”, disse Obama.
“Vi uma atuação consistente por parte do juiz Alito em que o papel tradicional da Suprema Corte como bastião de igualdade e justiça para o cidadão norte-americano não é defendido.”
O que é Roe versus Wade?
Roe versus Wade é o caso judicial que resultou na decisão histórica da Suprema Corte dos EUA que reconheceu o direito das mulheres de fazer um aborto no país.
Em 1969, uma mulher chamada Norma McCorvey engravidou de seu terceiro filho. Ela queria fazer um aborto, mas as leis do seu Estado natal, o Texas, proibiam o procedimento. Ela então processou o estado sob o pseudônimo legal “Jane Roe”. Do outro lado estava o promotor distrital local Henry Wade.
A decisão deu às mulheres o direito absoluto ao aborto nos primeiros três meses de gravidez.
Mas legisladores em Estados conservadores aprovaram leis que tentam colocar obstáculos ao aborto.
Em 1992, no caso Planned Parenthood versus Casey, a Suprema Corte decidiu que os Estados não poderiam colocar um “fardo indevido” em mulheres que procuravam abortos antes que um feto pudesse sobreviver fora do útero (cerca de 24 semanas).
Como o aborto está sendo questionado na Justiça?
Ambas as decisões estão sendo contestadas por uma lei estadual do Mississippi que proíbe abortos após as primeiras 15 semanas de gravidez – incluindo aqueles causados por estupro ou incesto.
A lei foi aprovada em 2018, mas ainda não foi aplicada devido a uma contestação legal do único provedor de aborto do Mississippi, a Jackson Women’s Health Organization.
O Mississippi está pedindo que a decisão sobre Roe versus Wade seja derrubada e, com isso, seja eliminado o direito constitucional ao aborto nos EUA.
Caso isso ocorra, os Estados conservadores certamente agirão rápido para estabelecer leis mais rígidas para o aborto, possivelmente com proibições definitivas antes da viabilidade fetal.
O Texas, por exemplo, introduziu uma proibição que impede o aborto assim que um batimento cardíaco fetal é detectado – o que pode ocorrer a partir de seis semanas e antes que muitas mulheres percebam que estão grávidas.
De acordo com o repórter da BBC Anthony Zurcher, o aborto seria imediatamente tornado ilegal em 22 estados por leis de “gatilho” projetadas precisamente para tal ocasião.
Somente em 2021, quase 600 restrições ao aborto foram introduzidas em todo o país, com 90 promulgadas em lei. Isso é mais do que em qualquer ano desde a decisão sobre Roe versus Wade.
‘Campo de batalha político’
Zurcher disse que a legalidade do procedimento se tornará um pesado campo de batalha político enquanto o país se prepara para as eleições legislativas em novembro.
Batalhas ideológicas e o vazamento de um documento oficial importante podem “destruir” a reputação do tribunal, diz o repórter.
“Ainda não se sabe o que isso significará para a legitimidade do processo judicial nos EUA, mas dentro da própria instituição parece que a confiança entre os juízes, um colegiado antes chamado de ‘irmandade’, não existe mais”.
“Outro grande pedaço se partiu em uma época em que as normas políticas se racham como cerâmica em um terremoto.”
Durante as audiências sobre o caso do Mississippi em dezembro, a juíza Sonia Sotomayor alertou contra a politização do tribunal.
“Esta instituição sobreviverá ao mau cheiro que a percepção pública sente, de que a Constituição e sua leitura são apenas atos políticos?”, ela perguntou a seus colegas. “Não vejo como isso é possível.”
Quem seria mais afetada?
Restringir o acesso ao aborto afetaria particularmente as mulheres pobres – que já são mais propensas a procurar um aborto em primeiro lugar.
As mulheres negras e hispânicas provavelmente serão particularmente afetadas – 61% dos pacientes de aborto nos EUA são de minorias étnicas.
Mulheres na faixa dos 20 anos são responsáveis pela maioria dos abortos – em 2019, cerca de 57% estavam nessa faixa etária.
Houve cerca de 630 mil abortos registrados nos EUA em 2019, de acordo com os centros de controle de doenças dos EUA. A queda foi de 18% em relação a 2010.
Depois que os documentos vazados foram publicados, ativistas pró e antiaborto se reuniram do lado de fora da Suprema Corte na capital Washington.
Emma Heussner, uma das manifestantes, disse que é bastante engajada para proibir o procedimento e que compareceu ao ato “para testemunhar a história”.
“Isto é algo monumental, o vazamento dos documentos da Suprema Corte. É monumental ver que Roe v Wade pode ser derrubado”, disse ela.
A reverenda Wendy Hamilton, candidata democrata à Câmara dos Deputados, disse estar determinada a lutar para preservar os direitos das mulheres de abortar.
“Eles não vão se safar disso. Eles não vão fazer isso com a América. Há mais de nós do que eles e vamos lutar.”